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30jun 2017

A Emenda Constitucional nº 96 e a injustificável resistência do Meio Jurídico quanto aos valores dos esportes que contam com a participação de animais

A recepção pela Constituição Federal de Atos Normativos Administrativos que regulamentam os esportes equestres e a necessidade de interpretação extensiva da expressão lei específica utilizada na Emenda Constitucional nº 96 de 2017

A Emenda Constitucional nº 96, de 6 de junho de 2017, acrescentou o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, para determinar que práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis.

A norma inserida na Carta Política tem a seguinte redação:

“Art. 225. (…)

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”

O inciso VII, do §1º, do art. 225 da Constituição Federal incumbe ao Poder Público o ofício de proteger os animais contra qualquer tipo de crueldade, indicando que a matéria deverá ser objeto de lei:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

Os dispositivos retro citados foram insculpidos no âmbito do art. 225 da Carta Política, cujo caput tem por escopo garantir a todos “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”.

A expressão “ecologicamente equilibrado” significa vedação ao comando sectário, pois a experiência humana não pode prescindir de regras inspiradas na razão para que se preserve o meio ambiente em todos os seus aspectos, sobretudo culturais.

O meio ambiente, em sua mais elevada acepção jurídica, não pode ser interpretado como algo intocável, insuscetível de intervenções, despido de forças sociais dinâmicas ou livres das expressões culturais, sob pena de configurar desprezo ao vocábulo equilibrado, que adjetiva o direito constitucionalmente tutelado. O homem não tem direito ao meio ambiente simplesmente intocável, mas sim ao meio ambiente “ecologicamente equilibrado”. A censura jurídica às expressões culturais de esportes equestres como o laço, a vaquejada e afins, a pretexto de sua lesividade contra animais, atribuindo-lhes a pecha genérica de crueldade, merece reflexão profunda. Esse tipo de ilação se mostra precipitada, vilipendiando a Constituição Federal e, ainda, soa ridículo ao crivo científico médico-veterinário e zootécnico.

É sabido que o mero manejo de animais gera estresse, a exemplo da vermifugação, vacinação ou mesmo intervenções nos atendimentos de saúde ou de controle sanitário. Para fazer mitigar o efeito do manejo, surgiu a disciplina conhecida como Bem Estar Animal, ou simplesmente BEA, aplicável também nos procedimentos de ordenha, abate de animais etc.

A propósito do fenômeno da recepção, Celso Ribeiro Bastos1 ensina:

Trata-se de um processo abreviado de criação de normas jurídicas, pelo qual a nova Constituição adota as leis já existentes, com ela compatíveis, dando-lhes validade, e assim evita o trabalho quase impossível de elaborar uma nova legislação de um dia para o outro. Portanto, a nova lei não é idêntica à lei anterior; ambas têm o mesmo conteúdo, mas a nova lei tem seu fundamento na nova Constituição, a razão de sua validade é, então, diferente”.

Verifica-se que BASTOS, apesar de se valer da expressão “as leis já existentes”, utiliza, no corpo do texto, os termos “normas jurídicas” e “legislação”, deixando claro que o fenômeno da recepção abrange toda a legislação e normas jurídicas não conflitantes com o novo texto constitucional, não se restringindo este fenômeno, portanto, às leis no sentido formal.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é responsável pelo fomento e pela fiscalização do bem-estar dos animais de produção e interesse econômico. A fiscalização é competência dos departamentos da SDA – Secretaria de Defesa Agropecuária (alínea “h” do art. 18 do Dec. 8.852/16) e o fomento é competência da Coordenação de Boas Práticas e Bem-estar Animal (CBPA) da Secretaria de Mobilidade Social, do Produtor Rural e Cooperativismo (SMC), nos termos da alínea “m”, do art. 25, do Dec. 8.852/16. Dentre as atribuições da CBPA estão a proposição de boas práticas de manejo, o alinhamento da legislação brasileira com os avanços científicos e os critérios estabelecidos pelos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como preparar e estimular o setor agropecuário brasileiro para o atendimento às novas exigências da sociedade brasileira e consumidores dos mercados importadores.

A alínea “p”, do art. 18, do Dec. 8.852/16 atribui à Secretaria de Defesa Agropecuária a função de “normatização do bem-estar animal, em conjunto com a Secretaria de Mobilidade Social, do Produtor Rural e do Cooperativismo”, portanto, parece que a expressão “lei específica”, que consta do novel §7º, do art. 225 da Constituição Federal, na linha tipológica, que flexibiliza os termos no contexto, recepciona os atos normativos que regulamentam as práticas de Bem Estar Animal, não necessitando de lei no sentido formal para que se exijam as boas práticas. Mantendo coerência com este raciocínio, também não se pode proibir a prática dos esportes equestres, pela ausência de leis, no sentido formal, que disciplinem “as práticas desportivas que utilizem animais” (sic §7º do art. 225 da CF).

Na avaliação do texto da Emenda Constitucional nº 96/17, ao utilizar a expressão lei específica, parece apenas buscar estabelecer critério objetivo à qualificação jurídica dos padrões de bem-estar animal, preconizados cientificamente. Na interpretação da expressão lei específica, há de se considerar o aspecto finalístico e da razoabilidade. Para tanto, a doutrina jurídica vem adotando o chamado sistema móvel, fruto das lições do jurista Canaris. A abordagem deste pensador foi reproduzida e atualizada pela Professora Misabel Derzi, que enfrentou, em sua tese destinada à Cátedra da conceituada UFMG, os contornos do tipo e do conceito, dando acabamento novo à doutrina primitiva do jurista alemão, imprimindo entendimento mais consentâneo acerca do tema doutrinário.

A questão do tipo assim foi tratada na investigação da Professora Misabel Derzi2:

É enorme a literatura, no campo das Ciências sociais, sobre tipo. Na Psicologia, na Filosofia, na História, na Metodologia e no Direito, a palavra tipo tornou-se moda já na primeira metade do século XX, podendo-se dizer que pouquíssimos termos técnicos gozaram de tamanha popularidade. E, a partir de então, como todo modismo, cresceu e se expandiu, a ponto de causar incômodo a certos ramos do conhecimento humano. Ambiguidade, polissemia e sentidos contraditórios são fenômenos que Leenen denomina de ‘o mal-estar na tipologia’.”

Continua Misabel Derzi3:

Como observa Larenz, o tipo ideal weberiano é ideal no sentido lógico, porque não quer ser uma diretriz ou norma; nele se acentua, artificialmente, a peculiaridade do fenômeno, tornando-se útil ao conhecimento das formas mistas ou menos puras encontráveis na realidade.

(…)

A primazia de uma e outra forma de raciocínio, sempre em tensão, na realidade, é manifestação da prevalência de tendências e princípios que também se relacionam em constante tensão: justiça, igualdade, uniformidade, segurança, praticidade, legitimidade e legalidade, economia utilidade etc. Uns e outros levam a movimentos de conceitualizaçao ou tipificação.”

A escolha técnica entre a qualificação de conceito ou tipo deve ser indicada pela natureza da matéria, mas certamente exige coerência. Por certo, em matéria de índole científica, a linguagem jurídica deve ser coerente com a necessidade científica consentânea, daí a impossibilidade de confinar o alcance e a extensão do sentido à frieza da unidade linguística utilizada, no caso, o termo lei, que não pode ser visto necessariamente como ato formal da atividade do Poder Legislativo. Sobre a necessidade de contextualização consentânea de tudo aquilo que reclama incursão jurídica, ensina Misabel Derzi:4 “a linguagem do Direito positivo é uma linguagem não atualizada, que contém referencias aos dados do mundo. É linguagem natural, e é por isso que um raciocínio dentro do direito não é questão lógica, mas extra lógica, uma vez não atualizado.” A natureza dos fatos leva a uma necessidade perene de atualização dos conceitos, portanto, o Direito adota o tipo, o conceito aberto, para sistematizar seu raciocínio e seu método interpretativo, de modo que seja sempre lógica e racionalmente aplicável, além de consentâneo à ideia predominante de justiça.

Enquanto o conceito é classificatório, o tipo é conceito aberto, que necessita de preenchimento de valor (no sentido mais amplo do termo). Eis o problema: o que seria valor, afinal, em matéria de bem-estar animal? Essa é a resposta a ser dada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em seu perene mister regulamentador, fomentador e fiscalizador. Os atos normativos propriamente ditos, como as instruções normativas e portarias e também os atos administrativos sem denominação específica, mas de natureza normativa, que prescrevem as boas práticas e o bem-estar animal, emanados da Secretaria de Defesa Agropecuária, em conjunto com a Secretaria de Mobilidade Social, do Produtor Rural e do Cooperativismo são válidos, devendo imprimir seus efeitos inerentes.

O bem-estar animal é assunto extremamente técnico, inclusive sua definição é polêmica. Em razão desta dificuldade conceitual, a terminologia bem-estar animal (BEA) aqui adotada como pressuposto conceitual compreende “o estado de um dado organismo durante as suas tentativas de se ajustar ao seu ambiente (Broom, 1986) ou “o estado do animal frente às suas tentativas de se adaptar ao ambiente em que se encontra (BROOM, 1986)”. A avaliação científica do bem-estar deve considerar o estado do animal de forma objetiva e separada de questões meramente intuitivas dos leigos. A propósito, no ambiente do BEA, devem ser consideradas, inclusive, as emoções dos animais, conforme DUNCAN (2005). Qual leigo ou profissional sem expertise adequada teria condição de avaliar este estado do animal? Vale dizer, indicar maus tratos não é uma questão meramente empírica, mas científica das ciências médico-veterinárias e zootécnicas. A tendência do terceiro milênio parece ser a inserção do BEA em todos os meios de produção e de circulação de riqueza que envolvam animais, e em todas as cadeias, consistindo uma delas aquelas da equideocultura e dos esportes equestres.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento editou Manual de boas práticas para o bem-estar animal em competições equestres5 que normatiza as boas práticas e permite fiscalizar, controlar e censurar as infrações que se relacionem com o bem-estar animal. A Constituição da República, ao utilizar a expressão “lei específica”, pretendeu subtrair do empirismo a indicação dos eventos de maus tratos, não significando exigência de lei no sentido formal para a tutela das “práticas desportivas”.

Renato Ourives Neves

1 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, 1º volume, ed. Saraiva, 1988, p. 367.

2 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 81-82.

3 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 86.

4 DERZI , op. cit. p. 127.

5 Catalogação na Fonte: Biblioteca Nacional de Agricultura – BINAGRI – Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Manual de boas práticas para o bem-estar animal em competições equestres // Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria do Produtor Rural e Cooperativismo. – Brasília : MAPA/ACE/CGCS, 2016. 32 p.// 1. Equino 2. Boas práticas. I. Secretaria do Produtor Rural e Cooperativismo. II. Título. AGRIS 5100 CDU 636.1

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