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11ago 2017

Positivação do Condomínio de Lotes e de Loteamento Fechado no Ordenamento Jurídico Brasileiro e a chancela às Associações de Proprietários como entes incumbidos da gestão e administração da base física desses empreendimentos

A Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, trouxe inúmeras inovações ao Ordenamento Jurídico Brasileiro, sendo objeto deste artigo a positivação de normas que dispõem sobre o loteamento fechado, ou condomínio fechado, e o reconhecimento da Associação de Proprietários como ente gestor desses tipos de empreendimentos imobiliários, conforme alterações e inserções introduzidas no Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e na Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (Lei Lehmann).

A Lei 6.766/79 passou a ter a seguinte redação:

“Art. 2º – O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes.

(…)

§ 7º – O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes.”

Houve menção expressa a “condomínio de lotes”. Mas não é só, pois a norma do parágrafo seguinte garante o controle de acesso ao loteamento:

“§ 8º – Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1º deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.”

Apenas para preservar a cadência do raciocínio, transcreve-se o § 1º citado no novel § 8º retro mencionado:

“§ 1º – Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.”

À primeira vista, pode parecer que a dicção “condomínio” diz respeito à projeção da propriedade a espaços que, embora públicos, são de desfrute comum e que o acesso deve observar cadastro e identificação (§ 8º do art. 2º da Lei 6.766/79), condição que julgamos carecedora de regulamentação adequada. Mas ao continuar a leitura da Lei Lehmann, com as introduções da Lei 13.465/17, percebe-se que poderá o loteamento fechado ser exclusivamente privado, totalmente sob a forma de condomínio de fato e de direito, com a instituição de servidões, direitos reais de uso e outras restrições, conforme se vê do § 4º, do art. 4º, da Lei 6.766/79 ao dispor sobre esta circunstância:

“§ 4 – º No caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros.”

Ficou claro que loteamento fechado não se equipara ao condomínio de lotes. Na primeira modalidade, o acesso é público, mas condicionado. Na segunda modalidade, o licenciamento do empreendimento pode ser exclusivamente em forma de condomínio de lotes, com instituições de limitações administrativas e de direitos reais em benefício do poder público e da população em geral, inclusive para fins de proteção de paisagens, podendo ser instituídas servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros. Esta hipótese não se equipara ao primeiro modelo, cujo arruamento, praças e áreas institucionais são públicos, dispensando constituição de servidões e outras instituições de direitos.

O Município deverá regulamentar e o empreendedor indicar, precisamente, a modalidade de loteamento, que poderá ser fechado ou em forma de condomínio (art. 1.358-A do Código Civil de 2002), consistindo esta última hipótese na projeção da propriedade de cada unidade às áreas comuns.

A administração dessas estruturas jurídicas imobiliárias será realizada por via de associações de proprietários:

“Art. 36-A – As atividades desenvolvidas pelas associações de proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos ou empreendimentos assemelhados, desde que não tenham fins lucrativos, bem como pelas entidades civis organizadas em função da solidariedade de interesses coletivos desse público com o objetivo de administração, conservação, manutenção, disciplina de utilização e convivência, visando à valorização dos imóveis que compõem o empreendimento, tendo em vista a sua natureza jurídica, vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis.”

As discussões travadas no colendo Superior Tribunal de Justiça e no Excelso Supremo Tribunal Federal,sobretudo o Tema de Repercussão Geral 492, da relatoria do Ministro Dias Toffoli,perdem o sentido, quando o empreendimento é concebido para ter a qualificação jurídica de loteamento fechado ou condomínio de lotes. Advogamos a ideia de que, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, esses modelos devem ser eleitos no processo de licenciamento e não a posteriori, devendo abordar restrições convencionais, forma de custeio, ou seja, se o valor da contribuição propterrem é por metro quadrado, unidade ou critério misto etc. O que não pode ocorrer é a simples imposição de um grupo mobilizado contra os proprietários pegos de surpresa.

Assim consta da consentânea norma:

“Art. 36-A() –

Parágrafo único – A administração de imóveis na forma do caput deste artigo sujeita seus titulares à normatização e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos.”

Vale dizer, o estatuto da associação deve ser minudente a respeito da forma de administração e do custeio.

O Código Civil também foi alterado para tornar possível a efetividade das inovações aqui tratadas:

“Seção IV

Do Condomínio de Lotes

Art. 1358-A – Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.

§ 1º – A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.

§ 2º – Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística.

§ 3º – Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor.”

Avançando nos pormenores da administração dos empreendimentos, entendemos que os diretores da associação de proprietários podem ser remunerados, como ocorre com os síndicos de condomínios edilícios. Antes, a hipótese de remunerar esbarrava em questão fiscal, como será a seguir abordada.

A Associação de Proprietários é uma organização de proprietários de um loteamento fechado ou de um condomínio fechado, sob a forma de sociedade civil sem fins lucrativos, cuja finalidade é atuar como se fosse o síndico de um condomínio edilício. A Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997, confere, em seu art. 15, isenção do Imposto de Renda, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido à associação que “não remunerar, por qualquer forma, seus dirigentes pelos serviços prestados, exceto no caso de associações, fundações ou organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, cujos dirigentes poderão ser remunerados, desde que atuem efetivamente na gestão executiva e desde que cumpridos os requisitos previstos nos arts. 3º e 16 da Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, respeitados como limites máximos os valores praticados pelo mercado na região correspondente à sua área de atuação, devendo seu valor ser fixado pelo órgão de deliberação superior da entidade, registrado em ata, com comunicação ao Ministério Público, no caso das fundações” (alínea “a” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97, com a redação dada pela lei 13.204/2015), “aplicar integralmente seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais” (alínea “b” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97), “manter escrituração completa de suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que assegurem a respectiva exatidão” (alínea “c” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97), “conservar em boa ordem, pelo prazo de cinco anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem assim a realização de quaisquer outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial”(alínea “d” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97), “apresentar, anualmente, Declaração de Rendimentos, em conformidade com o disposto em ato da Secretaria da Receita Federal” (alínea “e” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97), “recolher os tributos retidos sobre os rendimentos por elas pagos ou creditados e a contribuição para a seguridade social relativa aos empregados, bem assim cumprir as obrigações acessórias daí decorrentes”(alínea “f” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97) e “assegurar a destinação de seu patrimônio a outra instituição que atenda às condições para gozo da imunidade, no caso de incorporação, fusão, cisão ou de encerramento de suas atividades, ou a órgão público” (alínea “g” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97), além da observância de outras normas aplicáveis às associações.

O § 3º do art. 12 da Lei 9.532/97 dispõe que “Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit em suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais”, ou seja, a destinação dos resultados é vinculada ao objeto social.

É interessante que o caráter prestacional deve ser indireto para se qualificar como receita isenta, conforme o seguinte entendimento:

“Consideram-se receitas derivadas das atividades próprias somente àquelas decorrentes de contribuições, doações, anuidades ou mensalidades fixadas por lei, assembleia ou estatuto, recebidas de associados ou mantenedores, sem caráter contraprestacional direto, destinadas ao seu custeio e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais. (IN SRF n º 247, de 2002, art. 47, § 2 º )

No que se refere ao PIS e à COFINS, a Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001 assim dispôs:

“Art. 13A – contribuição para o PIS/PASEP será determinada com base na folha de salários, à alíquota de um por cento, pelas seguintes entidades:

(…)

IV – instituições de caráter filantrópico, recreativo, cultural, científico e as associações, a que se refere o art. 15 da Lei nº 9.532, de 1997;”

“Art. 14Em – relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 1º de fevereiro de 1999, são isentas da COFINS as receitas:

(…)

X – relativas às atividades próprias das entidades a que se refere o art. 13″

Portanto, a associação de proprietários é isenta do IR, da CSLL e da COFINS. Quanto ao PIS, paga 1% (um por cento) sobre sua folha de salário.

A questão é que os diretores de associações de proprietários se dedicam sobremaneira e efetivamente na administração da Associação, cuja modelo se equipara à administração de condomínio edilíciio, merecendo, segundo nosso entendimento, tratamento tributário isonômico, similar àquele atribuído aos dirigentes mencionados pelo texto da alínea “a” do § 2º do art. 12 da Lei 9.532/97, com a redação dada pela Lei 13.204/15 e ao síndico de condomínios edilícios, sobretudo com a nova redação dada pelo código civil, no § 2º, do art. 1.358-A, figuras – síndico e diretor de associação – que se equiparam, neste ponto particular de administração, eis que o objetivo tanto do SÍNDICO de CONDOMÍNIO EDILÍCIO, quanto da DIRETORIA de ASSOCIAÇÃO DE PROPRIETÁRIOS é tão somente administrar interesses comuns, não havendo fins lucrativos.

Entendemos que a Associação de proprietário tanto pode remunerar, como indenizar ou compensar os diretores, seja por valor fixo, seja através da “isenção” do valor da contribuição propterrem mensal de sua unidade, inclusive – mas não exclusivamente – a título de “incentivo” ao exercício do cargo, que é idêntico ao do SÍNDICO (hoje equiparada pelo Código Civil) e, pela atual redação à alínea “a”, do § 2º, do art. 12, da Lei 9.532/97, o que deverá ser decidido pelo Órgão Deliberativo, ou seja, o Conselho Deliberativo da Associação ou a Assembleia Geral.

A alínea “a”, do § 2º, do art. 12 da Lei 9.532/97, apesar do avanço pela nova redação dada pela Lei 13.204/15, não abordava, de forma clara e expressa, a questão das associações de proprietários, cujos dirigentes têm, agora, com a lei 13.465/17, papel idêntico ao do síndico. Portanto, dada a absoluta identidade de atribuições da diretoria da associação de proprietários dos condomínios fechados ou dos loteamentos com a do síndico de condomínio edilício, poderia ser atribuído, a título de compensação pelos esforços, a isenção aos diretores da contribuição mensal propterrem ou mesmo remuneração/retribuição, enquanto estiverem no exercício das atividades do cargo e, cumpridos os requisitos dos artigos 3º e 6º da Lei 9.790/99, ficam mantidas as isenções do IR, da COFINS e da CSLL e o sistema diferenciado de tributação do PIS.

A Lei 13.465/17 representa importante avanço para a modernização do Direito Imobiliário brasileiro, aproximando os loteamentos fechados e os condomínios de lotes em instituições similares à Homeowner’s Association – HOA norte-americana.

Autor:
NEVES, Renato Ourives

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30jun 2017

A Emenda Constitucional nº 96 e a injustificável resistência do Meio Jurídico quanto aos valores dos esportes que contam com a participação de animais

A recepção pela Constituição Federal de Atos Normativos Administrativos que regulamentam os esportes equestres e a necessidade de interpretação extensiva da expressão lei específica utilizada na Emenda Constitucional nº 96 de 2017

A Emenda Constitucional nº 96, de 6 de junho de 2017, acrescentou o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, para determinar que práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis.

A norma inserida na Carta Política tem a seguinte redação:

“Art. 225. (…)

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”

O inciso VII, do §1º, do art. 225 da Constituição Federal incumbe ao Poder Público o ofício de proteger os animais contra qualquer tipo de crueldade, indicando que a matéria deverá ser objeto de lei:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

Os dispositivos retro citados foram insculpidos no âmbito do art. 225 da Carta Política, cujo caput tem por escopo garantir a todos “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”.

A expressão “ecologicamente equilibrado” significa vedação ao comando sectário, pois a experiência humana não pode prescindir de regras inspiradas na razão para que se preserve o meio ambiente em todos os seus aspectos, sobretudo culturais.

O meio ambiente, em sua mais elevada acepção jurídica, não pode ser interpretado como algo intocável, insuscetível de intervenções, despido de forças sociais dinâmicas ou livres das expressões culturais, sob pena de configurar desprezo ao vocábulo equilibrado, que adjetiva o direito constitucionalmente tutelado. O homem não tem direito ao meio ambiente simplesmente intocável, mas sim ao meio ambiente “ecologicamente equilibrado”. A censura jurídica às expressões culturais de esportes equestres como o laço, a vaquejada e afins, a pretexto de sua lesividade contra animais, atribuindo-lhes a pecha genérica de crueldade, merece reflexão profunda. Esse tipo de ilação se mostra precipitada, vilipendiando a Constituição Federal e, ainda, soa ridículo ao crivo científico médico-veterinário e zootécnico.

É sabido que o mero manejo de animais gera estresse, a exemplo da vermifugação, vacinação ou mesmo intervenções nos atendimentos de saúde ou de controle sanitário. Para fazer mitigar o efeito do manejo, surgiu a disciplina conhecida como Bem Estar Animal, ou simplesmente BEA, aplicável também nos procedimentos de ordenha, abate de animais etc.

A propósito do fenômeno da recepção, Celso Ribeiro Bastos1 ensina:

Trata-se de um processo abreviado de criação de normas jurídicas, pelo qual a nova Constituição adota as leis já existentes, com ela compatíveis, dando-lhes validade, e assim evita o trabalho quase impossível de elaborar uma nova legislação de um dia para o outro. Portanto, a nova lei não é idêntica à lei anterior; ambas têm o mesmo conteúdo, mas a nova lei tem seu fundamento na nova Constituição, a razão de sua validade é, então, diferente”.

Verifica-se que BASTOS, apesar de se valer da expressão “as leis já existentes”, utiliza, no corpo do texto, os termos “normas jurídicas” e “legislação”, deixando claro que o fenômeno da recepção abrange toda a legislação e normas jurídicas não conflitantes com o novo texto constitucional, não se restringindo este fenômeno, portanto, às leis no sentido formal.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é responsável pelo fomento e pela fiscalização do bem-estar dos animais de produção e interesse econômico. A fiscalização é competência dos departamentos da SDA – Secretaria de Defesa Agropecuária (alínea “h” do art. 18 do Dec. 8.852/16) e o fomento é competência da Coordenação de Boas Práticas e Bem-estar Animal (CBPA) da Secretaria de Mobilidade Social, do Produtor Rural e Cooperativismo (SMC), nos termos da alínea “m”, do art. 25, do Dec. 8.852/16. Dentre as atribuições da CBPA estão a proposição de boas práticas de manejo, o alinhamento da legislação brasileira com os avanços científicos e os critérios estabelecidos pelos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como preparar e estimular o setor agropecuário brasileiro para o atendimento às novas exigências da sociedade brasileira e consumidores dos mercados importadores.

A alínea “p”, do art. 18, do Dec. 8.852/16 atribui à Secretaria de Defesa Agropecuária a função de “normatização do bem-estar animal, em conjunto com a Secretaria de Mobilidade Social, do Produtor Rural e do Cooperativismo”, portanto, parece que a expressão “lei específica”, que consta do novel §7º, do art. 225 da Constituição Federal, na linha tipológica, que flexibiliza os termos no contexto, recepciona os atos normativos que regulamentam as práticas de Bem Estar Animal, não necessitando de lei no sentido formal para que se exijam as boas práticas. Mantendo coerência com este raciocínio, também não se pode proibir a prática dos esportes equestres, pela ausência de leis, no sentido formal, que disciplinem “as práticas desportivas que utilizem animais” (sic §7º do art. 225 da CF).

Na avaliação do texto da Emenda Constitucional nº 96/17, ao utilizar a expressão lei específica, parece apenas buscar estabelecer critério objetivo à qualificação jurídica dos padrões de bem-estar animal, preconizados cientificamente. Na interpretação da expressão lei específica, há de se considerar o aspecto finalístico e da razoabilidade. Para tanto, a doutrina jurídica vem adotando o chamado sistema móvel, fruto das lições do jurista Canaris. A abordagem deste pensador foi reproduzida e atualizada pela Professora Misabel Derzi, que enfrentou, em sua tese destinada à Cátedra da conceituada UFMG, os contornos do tipo e do conceito, dando acabamento novo à doutrina primitiva do jurista alemão, imprimindo entendimento mais consentâneo acerca do tema doutrinário.

A questão do tipo assim foi tratada na investigação da Professora Misabel Derzi2:

É enorme a literatura, no campo das Ciências sociais, sobre tipo. Na Psicologia, na Filosofia, na História, na Metodologia e no Direito, a palavra tipo tornou-se moda já na primeira metade do século XX, podendo-se dizer que pouquíssimos termos técnicos gozaram de tamanha popularidade. E, a partir de então, como todo modismo, cresceu e se expandiu, a ponto de causar incômodo a certos ramos do conhecimento humano. Ambiguidade, polissemia e sentidos contraditórios são fenômenos que Leenen denomina de ‘o mal-estar na tipologia’.”

Continua Misabel Derzi3:

Como observa Larenz, o tipo ideal weberiano é ideal no sentido lógico, porque não quer ser uma diretriz ou norma; nele se acentua, artificialmente, a peculiaridade do fenômeno, tornando-se útil ao conhecimento das formas mistas ou menos puras encontráveis na realidade.

(…)

A primazia de uma e outra forma de raciocínio, sempre em tensão, na realidade, é manifestação da prevalência de tendências e princípios que também se relacionam em constante tensão: justiça, igualdade, uniformidade, segurança, praticidade, legitimidade e legalidade, economia utilidade etc. Uns e outros levam a movimentos de conceitualizaçao ou tipificação.”

A escolha técnica entre a qualificação de conceito ou tipo deve ser indicada pela natureza da matéria, mas certamente exige coerência. Por certo, em matéria de índole científica, a linguagem jurídica deve ser coerente com a necessidade científica consentânea, daí a impossibilidade de confinar o alcance e a extensão do sentido à frieza da unidade linguística utilizada, no caso, o termo lei, que não pode ser visto necessariamente como ato formal da atividade do Poder Legislativo. Sobre a necessidade de contextualização consentânea de tudo aquilo que reclama incursão jurídica, ensina Misabel Derzi:4 “a linguagem do Direito positivo é uma linguagem não atualizada, que contém referencias aos dados do mundo. É linguagem natural, e é por isso que um raciocínio dentro do direito não é questão lógica, mas extra lógica, uma vez não atualizado.” A natureza dos fatos leva a uma necessidade perene de atualização dos conceitos, portanto, o Direito adota o tipo, o conceito aberto, para sistematizar seu raciocínio e seu método interpretativo, de modo que seja sempre lógica e racionalmente aplicável, além de consentâneo à ideia predominante de justiça.

Enquanto o conceito é classificatório, o tipo é conceito aberto, que necessita de preenchimento de valor (no sentido mais amplo do termo). Eis o problema: o que seria valor, afinal, em matéria de bem-estar animal? Essa é a resposta a ser dada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em seu perene mister regulamentador, fomentador e fiscalizador. Os atos normativos propriamente ditos, como as instruções normativas e portarias e também os atos administrativos sem denominação específica, mas de natureza normativa, que prescrevem as boas práticas e o bem-estar animal, emanados da Secretaria de Defesa Agropecuária, em conjunto com a Secretaria de Mobilidade Social, do Produtor Rural e do Cooperativismo são válidos, devendo imprimir seus efeitos inerentes.

O bem-estar animal é assunto extremamente técnico, inclusive sua definição é polêmica. Em razão desta dificuldade conceitual, a terminologia bem-estar animal (BEA) aqui adotada como pressuposto conceitual compreende “o estado de um dado organismo durante as suas tentativas de se ajustar ao seu ambiente (Broom, 1986) ou “o estado do animal frente às suas tentativas de se adaptar ao ambiente em que se encontra (BROOM, 1986)”. A avaliação científica do bem-estar deve considerar o estado do animal de forma objetiva e separada de questões meramente intuitivas dos leigos. A propósito, no ambiente do BEA, devem ser consideradas, inclusive, as emoções dos animais, conforme DUNCAN (2005). Qual leigo ou profissional sem expertise adequada teria condição de avaliar este estado do animal? Vale dizer, indicar maus tratos não é uma questão meramente empírica, mas científica das ciências médico-veterinárias e zootécnicas. A tendência do terceiro milênio parece ser a inserção do BEA em todos os meios de produção e de circulação de riqueza que envolvam animais, e em todas as cadeias, consistindo uma delas aquelas da equideocultura e dos esportes equestres.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento editou Manual de boas práticas para o bem-estar animal em competições equestres5 que normatiza as boas práticas e permite fiscalizar, controlar e censurar as infrações que se relacionem com o bem-estar animal. A Constituição da República, ao utilizar a expressão “lei específica”, pretendeu subtrair do empirismo a indicação dos eventos de maus tratos, não significando exigência de lei no sentido formal para a tutela das “práticas desportivas”.

Renato Ourives Neves

1 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, 1º volume, ed. Saraiva, 1988, p. 367.

2 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 81-82.

3 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009. p. 86.

4 DERZI , op. cit. p. 127.

5 Catalogação na Fonte: Biblioteca Nacional de Agricultura – BINAGRI – Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Manual de boas práticas para o bem-estar animal em competições equestres // Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria do Produtor Rural e Cooperativismo. – Brasília : MAPA/ACE/CGCS, 2016. 32 p.// 1. Equino 2. Boas práticas. I. Secretaria do Produtor Rural e Cooperativismo. II. Título. AGRIS 5100 CDU 636.1

15dez 2016

Depoimento Renato Ourives Sobre I Workshop Liderança ConnectHorse (Impressões erigidas do metier em Direito Corporativo e da experiência com cavalos)

Renato Ourives Neves*

Prolegômenos

Liderança, cooperação, competição, estímulos positivos e negativos, conforto e desconforto, conflitos de agência e timing são alguns dos temas abordados pela Connect Horse, tudo em ambiente lúdico, no qual o cavalo, como vedete, inspira, induz, revela e extrai ações não raras vezes confinadas no inconsciente de quem se candidata à experiência.

15dez 2016

INFELIZES ILAÇÕES SOBRE A HOMEOWNERS ASSOCIATION – HOA E ASPECTOS JURÍDICOS DAS ASSOCIAÇÕES DE PROPRIETÁRIOS DE IMÓVEIS

A ilação do STJ sobre a cobrança de contribuição por associações

Nas últimas semanas ganharam destaque dois acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, exarados nos Recursos Especiais 1.439.163/SP e 1.280.871/SP, julgados pela Segunda Seção, nos termos do artigo 543-C do Código de Processo Civil, regra aplicável aos recursos repetitivos. O desate foi o seguinte: “As taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou os que a elas não anuíram”.

15dez 2016

A equiparação do comprador de lote ao condômino à luz do Decreto Lei 271/67 e suas repercussões

O Código Civil de 2002, no Capítulo VII, Título III, do Livro III revogou a Lei Federal nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, naquilo que regulamentava o chamado condomínio edilício. Esta lei vigorou por mais de trinta e nove anos, se considerarmos a entrada em vigor da norma revogadora, o Código Civil de 2002, com vigência a partir de 11 de janeiro de 2003 (vacatio legis de um ano).